bom dia!
quem se lembra do auge das paródias musicais? do casseta e planeta ao comédia mtv, essa fórmula rendeu horas de entretenimento, mas embora ainda tenha quem goste, já não é tão engraçada assim. o mesmo vale pros bordões repetitivos do zorra. difícil quem ainda ria de um ai, como eu tô bandida.
o eixo pânico/cqc/legendários (o do marcos mion) também caiu em desuso. foi ficando sem graça porque o mundo muda e os formatos se esgotam.
se a gente voltar mais a fita, vai ver um monte de coisa que não tem mais tanta graça, porque humor demanda estranhamento e a capacidade de sintetizar o espírito de um tempo sob uma estética que surpreenda. e aí os humoristas precisam se transformar.
eu falo de formato, pra dizer que a regra vale também pra temática. quando eu era criança, o jeca gay do moacir franco era sensação na tv aberta. hoje, se eu botar isso pra assistir, vou me dissolver em vergonha alheia, e não só porque o negócio ridicularizava homens gays e a vida rural, mas porque o mundo andou e, quando o mundo anda, seja reinventando estéticas, seja aprimorando debates, certas piadas param de funcionar. é um processo orgânico.
no documentário o riso dos outros (2012), laerte lembra que a graça nasce do repertório compartilhado. isso quer dizer que, quando uma plateia não partilha da ideia de que ser gay é engraçado, piadas homofóbicas se esvaziam. e é o que tá acontecendo aos poucos.
mesmo assim, há humoristas perdidos nas décadas, fazendo piada pra quem também tá preso nos anos 2000. então entramos no que eu chamo de anomalia do palhaço tosco. ele até gera estranhamento, mas não com a eficácia de uma piada boa, ele só assusta.
e aí de nada adianta elaborar uma experiência limítrofe de linguagem e contexto, se ela não conversa com o momento em que estamos. não é questão de moralizar o discurso, é uma questão de se localizar no tempo e no espaço.
alguém precisa dar um espelho pro palhaço ver que o que ele faz não é provocador nem engraçado, é só bizarro.
o pior de tudo é que são bizarrices com impactos sociais agindo como desfibriladores de um mundo ultrapassado que precisa terminar de morrer, mas o palhaço não quer deixar.
piadas homofóbicas, racistas, misóginas ou que naturalizam a pedofilia não só reforçam estigmas: elas atualizam traumas. o psicólogo henri tajfel, em sua teoria da identidade social (1979), diz que o pertencimento a grupos é central para a construção da autoestima e da segurança emocional. e o humor que ri de estratos minoritários corrói essa dignidade.
aquele que zomba se alinha simbolicamente a um grupo dominante, reafirmando a hierarquia social vigente e se afastando dos ridicularizados. o riso partilhado, por sua vez, produz coesão entre os que ocupam posições de privilégio, operando como um sinal de grupo que exclui quem contesta ou se ofende.
por isso, quando um humorista é criticado ou punido por destilar preconceito, outros humoristas, sobretudo os que ocupam o mesmo lugar social, podem se indignar, não só por solidariedade profissional, mas porque percebem a crítica como uma ameaça ao seu espaço simbólico de poder, liberdade e pertencimento.
a condenação de um representa, para eles, uma tentativa de desestabilizar a norma que os protege e os legitima.
e aqui vale ressaltar a diferença entre quem e o que faz rir em uma piada. vilãs de novela e caricaturas como os pilotos do choque operam dentro de uma construção grotesca por natureza e o espectador entende a ironia pelo contraste que aquela máscara traz.
quando o julinho da van diz que hoje em dia não pode nem agredir um idoso, você não ri do idoso, você ri do personagem, que, pelo contexto, se mostra pouco confiável. há uma sensível camada de metalinguagem. quem ri dessas figuras não está rindo com elas, mas delas e o humor escancara o nonsense.
já o que ocorre em boa parte dos stand-ups é diferente: o humorista fala em primeira pessoa, sem grande elaboração simbólica prévia. ao dizer que mulher no volante é um perigo, por exemplo, mesmo que sob a desculpa de um tô brincando, a relação que se estabelece no palco é com a piada em si. o efeito é de afirmação direta de preconceitos.
mas mesmo caricaturas podem reforçar velhas estruturas, a diferença é epistemológica e contextual. e ainda que alguns humoristas se façam de desentendidos e coloquem toda piada no mesmo balaio, as nuances costumam ser sutis, mas não é tão difícil assim identificar quando um trabalho é usado para evidenciar contradições ou para fortalecê-las.
a história tem mostras desse caráter ambíguo.
em regimes totalitários, como o nazismo, caricaturas antissemitas eram amplamente veiculadas como humor popular. no brasil, personagens como o baiano preguiçoso e o caipira ignorante foram naturalizados por décadas em programas de grande audiência, reproduzindo estigmas regionais, raciais e de classe sob o disfarce da comédia.
hoje, com o amadurecimento de muitas pautas sociais, piadas assim causam repulsa em boa parte do público, não por censura, mas porque deu pra entender o custo humano dessas narrativas.
a saber, nenhum humorista é condenado por fazer “piada pesada”, mas por cometer crimes como racismo, homofobia e por aí vai. comportamentos que foram criminalizados após amplas discussões.
em outras palavras, não estamos falando de censura, mas de reafirmar conquistas, e é inaceitável quem insiste em usar o riso como escudo pra retomar engrenagens que já moeram tanta gente.
vai fundo
michael billig
em laughter and ridicule (2005), o pesquisador britânico michael billig argumenta que todas as culturas usam o ridículo como forma de manter as normas e os discursos dominantes: quem está no grupo hegemônico ri, quem está fora é ridicularizado. te parece familiar?
elliot aronson feat. joshua aronson
um dos tópicos debatidos em o animal social (1972) é como o preconceito se forma e se mantém, com base em estudos sobre desumanização, hostilidade entre grupos e conformismo. embora não trate diretamente do humor, a obra ajuda a compreender o papel que ele pode desempenhar nesse processo.
clickbait do bem
desmaio, tumulto e revolta: relembre o momento em que impostores do patati e patatá chocaram salvador (e o mundo!)
você já conhece a história, mas só quem viveu sabe. humor bom é humor que choca, mas do jeito certo.
beijo, beijo e até daqui a 15 dias!
esse texto integra a editoria de crônicas da germina, um espaço para reflexões que merecem um minutinho da sua atenção.